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Judicialização no setor aéreo: impactos operacionais e na democratização do setor

Fonte: Estadão (31 de março de 2021)

Um dos principais custos de uma companhia aérea que opera no Brasil decorre da judicialização da disputa entre os passageiros e a companhia, o que, por consequência, faz com que ainda seja oneroso para o consumidor viajar no Brasil, além de desestimular a entrada de novas empresas e prejudicar o desenvolvimento daquelas que aqui já operam.
 
No Brasil, de maneira geral e por uma questão cultural, a judicialização ainda é o mecanismo mais utilizado para se resolver conflitos corriqueiros.

No transporte aéreo não é diferente. Em que pese sermos uma referência mundial no setor, com uma frota moderna, aeroportos pontuais e baixos índices de cancelamentos e atrasos de voos, estando a frente de países desenvolvidos, nosso índice de judicialização é altíssimo e cresce exponencialmente, causando imensos custos e prejuízos para as companhias aéreas e prejudicando o desenvolvimento do setor.
 
Alguns pontos de reflexão merecem destaque. O primeiro deles é o acesso desmoderado à justiça, inclusive com a criação e manutenção de juizados especiais dentro de aeroportos. Essa medida, que fez sentido no passado, quando o setor passou por um momento excepcional de colapso, hoje não mais se justifica, e acaba por contribuir para o aumento do número de ações judiciais e prejudica a procura dos consumidores por canais disponibilizados pelas próprias empresas e até mesmo pelo Estado, como a plataforma consumidor.gov, para resolução amigável dos conflitos.
 
Outro ponto de reflexão é acerca da cultura do dano moral. Hoje, apesar de entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do REsp no 1.584.465, em 2018, no qual se confirmou que não há que se falar em dano moral presumido em casos decorrentes de transporte aéreo, ainda encontramos barreiras nos Tribunais. Significa dizer que, o entendimento que ainda predomina, é de que não é necessário que o consumidor faça prova do dano, e, portanto, a indenização acaba sendo líquida e certa. Isso incentiva a procura pelo Judiciário em busca de indenizações injustificadas e, por consequência, gera um grande aumento no número de ações judiciais contra as companhias aéreas, inclusive estimulando a criação dos chamados aplicativos “abutres”, que atuam comercializando serviços jurídicos, propondo a compra de créditos futuros, neste caso, compra de crédito oriunda de direitos personalíssimos, antes de uma decisão definitiva, o que é vedado pela Lei brasileira.
 
Veja que no Brasil, ao contrário do que ocorre em muitos outros países, situações inerentes à operação do transporte aéreo e que impossibilitam a prestação deste serviço por parte das companhias, como por exemplo, condições climáticas, geram o dever punitivo de indenizar das empresas, quando na verdade não deveriam, pois são acontecimentos estranhos à sua atividade comercial e fogem de qualquer previsibilidade que possibilitassem uma ação delas a fim de evitá-los.
 
Acompanhando os recentes julgados sobre o tema, observa-se que ainda, para grande parte dos Tribunais do país, pouco importa qual a situação que causou um atraso ou o cancelamento de um voo, basta ocorrer que surgirá o dever da companhia de indenizar pelo dano moral. Equivocadamente, não se pondera se de fato houve um dano à personalidade daquele passageiro, um sofrimento significativo e, por fim, se ele se deu em razão dos fatos narrados bem como o grau de contribuição do passageiro para o acontecimento.
 
Isso contribui para um grande volume de processos judiciais e gera um efeito reflexo em desfavor do consumidor, já que reflete no aumento no preço do valor do bilhete e prejudica diretamente a concorrência no setor.
 
A Lei n14.034, de 5 de agosto de 2020, trouxe um importante avanço neste ponto para a aviação civil brasileira. Visando reduzir os impactos decorrentes da pandemia da Covid-19, a nova Lei condiciona o pedido de indenização por danos morais à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro.
 
Temos também em vigor o Código Brasileiro de Aeronáutica que regulamenta as atividades do setor e, da mesma forma, prevê a comprovação de culpa para imputação de responsabilidade, e a Convenção de Montreal, que limita os valores das indenizações tanto em casos de atraso de voo como em casos de extravio de bagagem. Entretanto, na prática processual, em que pese os diplomas especiais estarem em vigor, ainda encontramos resistência na sua aplicação por parte dos Tribunais brasileiros.
 
Para que se tenha um transporte eficiente e democratizado, é preciso que se tenha segurança jurídica. É papel do Poder Judiciário e dos aplicadores do direito, em geral, trabalhar pelo equilíbrio das relações sociais, aplicando as leis corretamente e fomentando a resolução dos conflitos sem benefícios ou prejuízos econômicos desproporcionais para as partes.
 
É fundamental que os pedidos das partes em suas ações e as decisões judiciais sejam revestidas em respeito aos princípios e regras que regulam a atividade econômica. Entender os impactos extra normativos dos processos judiciais, em decorrência da inafastável natureza econômica, social e política decorrente de um tema precipuamente jurídico, no aspecto de ser legislado, é fundamental para o julgamento atual das complexas relações sociais e para que se alcance um sistema judicial integro, eficiente e seguro, o que por certo trará benefícios para ambos os lados, bem como para sociedade.
 

 
*Julia Vieira de Castro Lins é sócia do escritório Albuquerque Melo, advogada graduada pela Faculdade Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC) e pós-graduanda em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil pela Universidade Candido Mendes