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O poder das agências reguladoras

Fonte: Estadão (30 de outubro de 2020)

O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade da Lei 13.269/2016, que havia autorizado o uso da fosfoetanolamina sintética, também conhecida como “pílula do câncer”, em pacientes com neoplasia maligna. Ainda que os efeitos da lei estivessem suspensos desde maio de 2016, por força de uma liminar proferida pelo plenário da Corte constitucional, a decisão de agora protege e reafirma o papel da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, por consequência, de todas as agências reguladoras.
 
O Poder Legislativo está acima das agências reguladoras. É o Congresso, por exemplo, que define as políticas que essas autarquias de regime especial deverão seguir na regulação e no acompanhamento das suas respectivas áreas de atuação. No entanto, e aqui está o ponto principal da decisão do STF, essa superioridade do Legislativo não equivale a uma permissão para que o Congresso atue no lugar das agências.
 
No caso, o Congresso havia autorizado o uso como medicamento da fosfoetanolamina sintética sem a devida aprovação da Anvisa. Logo após a promulgação da lei, a Associação Médica Brasileira (AMB) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), sustentando que, pela falta de testes da substância em seres humanos e pelo desconhecimento sobre a eficácia e os efeitos colaterais do medicamento, a liberação da “pílula do câncer” feria direitos e garantias constitucionais, como os direitos à saúde, à segurança e à vida, bem como desrespeitava o próprio princípio da dignidade da pessoa humana.
 
Em seu voto, o relator da Adin 5.501, ministro Marco Aurélio, lembrou que a permissão para distribuição de substâncias químicas, segundo protocolos cientificamente validados, é competência da Anvisa. Não cabe, assim, ao Legislativo, ao Executivo ou ao próprio Judiciário autorizar no País o uso de substância química como medicamento. Essa atribuição – que inclui autorização para industrialização, comercialização e importação com fins comerciais – é unicamente da Anvisa, que, no exercício dessa função, deve seguir procedimentos cientificamente comprovados.
 
Assim, também a agência reguladora não detém poder despótico ou arbitrário sobre sua área de atuação, devendo respeitar os devidos protocolos. Por exemplo, a Anvisa não poderia ter aprovado a fosfoetanolamina sintética, uma vez que, tal como lembrou o ministro Marco Aurélio, não houve nem mesmo o protocolo de pedido de registro da substância perante a agência.
 
No Estado Democrático de Direito, o exercício do poder deve sempre respeitar as respectivas competências e os devidos procedimentos. Com razão, essa realidade é frequentemente lembrada em relação ao funcionamento do Executivo, Legislativo e Judiciário. Cada um dos Três Poderes deve respeitar as atribuições dos outros dois, sem se imiscuir em searas alheias. Mas esse estrito respeito às competências institucionais também se aplica a todas as esferas do poder público, sob pena de exercício arbitrário do poder.
 
É de reconhecer, portanto, que o descuido com que as agências reguladoras foram tratadas pelo Executivo federal nos governos de Lula e Dilma – descuido que em boa medida também se observa na gestão Bolsonaro – não revela apenas uma incapacidade de enxergar os benefícios que essas autarquias podem trazer para o cidadão, em termos de economia, eficiência e transparência. O desrespeito ao âmbito e à natureza das agências reguladoras explicita também uma profunda incompreensão sobre os limites do exercício do próprio poder, aspecto fundamental de um Estado Democrático de Direito.
 
As agências reguladoras receberam um grande impulso nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Produziu-se não apenas um ganho de eficiência, mas houve um impressionante avanço institucional. No ano passado, o Congresso aprovou a Lei Geral das Agências Reguladoras (Lei 13.848/2019), cuja tramitação contou com especial atenção do governo de Michel Temer. É preciso progredir no respeito ao papel das agências. O País só tem a ganhar.