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Epidemia eleva pressão para taxar mais as multinacionais

Fonte: Valor Econômico (10 de julho de 2020)


 
O Savoy Hotel, de Londres, tem dado boas-vindas à sua clientela de alta renda há 131 anos. Ainda assim, apesar do design Art déco e do atendimento sublime, o Savoy perde dinheiro. Muito dinheiro.
 
Na verdade, perde dinheiro desde que os atuais donos, o príncipe saudita Alwaleed bin Talal e a Qatar Investment Authority, compraram o hotel em 2005. Em 2018, o prejuízo foi de 20,4 milhões de libras esterlinas (US$ 25,61 milhões) e, no ano anterior, de 83 milhões de libras.
 
Os balanços da empresa trazem várias explicações: terrorismo, Brexit e a alta da libra. A covid-19 certamente estará no próximo balanço. Mas há outro motivo. Em 2018, o Savoy tinha dívidas de 347 milhões de libras e pagava juros de até 15%, altíssimos para a Europa.
 
O dinheiro foi emprestado pela controladora imediata do The Savoy Hotel Limited, uma empresa chamada Dunwilco (1784) Limited, que por sua vez pertence à uma empresa chamada Dunwilco (1783), que por sua vez pertence à Dunwilco (1847), que por sua vez pertence ao dono derradeiro do hotel, a Breezeroad Limited, com registro no Reino Unido. A dívida flui em cascata nessa estrutura empresarial e costuma ser refinanciada a cada um ou dois anos.
 
Para os dois principais acionistas do Savoy Hotel, um dos homens mais ricos do mundo e um dos maiores fundos soberanos, esse arranjo complexo têm dois efeitos notáveis: as contas do Savoy parecem impenetráveis para quem é de fora e a empresa não pagou nada de imposto como pessoa jurídica nos últimos 15 anos.
 

 
No mundo moderno da tributação de empresas, o Savoy está longe de ser exceção. O hotel é apenas uma entre inúmeras empresas de alta visibilidade internacional que se tornaram mestres em minimizar o pagamento de impostos. O método é simples: os donos do Savoy emprestam dinheiro ao hotel e extraem uma receita livre de impostos na forma de pagamentos de juros enviados a jurisdições em paraísos fiscais (o Savoy não quis se pronunciar sobre a sua estrutura empresarial nem sobre seus assuntos tributários). Caso necessário, assessores tributários têm inúmeras outras ideias para aliviar o fardo tributário de umaempresa.
 
“Minha opinião é que o arcabouço existente está totalmente quebrado”, diz Michael Devereux, professor de tributação de empresas na Saïd Business School, da Universidade de Oxford. “Você não pode reagir a esses problemas culpando as multinacionais [por se aproveitarem das leis] nem culpando os paraísos fiscais. Temos de culpar o sistema tributário.”
 

Dez anos após a crise de 2008, as grandes múltis estão pagando menos imposto como proporção do lucro

 
Governos pelo mundo têm reagido à pandemia com gastos públicos em massa. Deram dinheiro diretamente aos cidadãos e assumiram o pagamento de salários de empresas inteiras. A Fitch Ratings estima que, até agora, as 20 maiores economias proporcionaram um apoio fiscal de US$ 5 trilhões, 7% de suas rendas nacionais combinadas. E podem surgir mais contas pesadas pela frente.
 
Em algum ponto, os governos precisarão começar a pensar sobre como pagar o inchaço de seus déficits. E isso significa que terão motivos históricos e convincentes para voltar a olhar com atenção para o enferrujado arcabouço internacional de tributação de empresas.
 
As multinacionais representam um alvo atraente. O setor empresarial como um todo tem sido um contribuinte relativamente estável para a arrecadação geral de impostos. Nos últimos 50 anos, os impostos sobre as empresas representaram entre 8% e 10% da arrecadação nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Ao longo do mesmo período, contudo, as alíquotas de impostos caíram mais de 50%, as isenções tributárias proliferaram e a elisão fiscal por meio de paraísos fiscais floresceu.
 

 
“Precisamos de um sistema justo”. Por trás dessa anomalia há uma importante divisão no mundo empresarial. As empresas domésticas, que são a maior base tributária na maioria dos países, têm pouca flexibilidade para evitar os impostos a pagar. Por outro lado, nas últimas décadas, muitas empresas transnacionais aproveitaram as chances que tiveram para reduzir sua exposição a impostos. Economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) estimam a arrecadação perdida com a elisão fiscal global em até US$ 650 bilhões ao ano.
 
No Reino Unido, mais de 50% das subsidiárias de multinacionais estrangeiras atualmente não contabilizam lucros tributáveis, segundo estudo de 2019 da pesquisadora Katarzyna Bilicka, da Universidade de Oxford. Nos EUA, 91 empresas da lista Fortune 500, entre as quais Amazon, Chevron e IBM, pagaram uma taxa efetiva zero em impostos federais em 2018.
 
Recursos públicos emergenciais injetados nas economias muitas vezes beneficiaram empresas que pagam um mínimo de impostos. No caso do Savoy, isso se deu por meio do pagamento de licenças remuneradas a 520 funcionários.
 
Muitos governos também preparam planos para arrecadar mais impostos das empresas digitais que prosperaram assombrosamente na pandemia, mesmo com suas operações possivelmente sendo o alvo mais difícil de atingir pelos fiscais da receita do século 21.
 
Para as multinacionais, trata-se de populismo barato transformá-las em bodes expiatórios para resolver a escalada dos déficits orçamentários com a covid-19. Mas, para alguns ministros das Finanças administrando um volume recorde de captações, o dia de ajuste de contas se aproxima.
 
Recursos públicos emergenciais, muitas vezes, beneficiaram empresas que pagam um imposto mínimo
 
“É uma simples questão do que é justo”, disse Bruno Le Maire, ministro das Finanças da França, ao “Financial Times”. “Devemos isso a nossos cidadãos e empresas, em especial às pequenas e médias empresas que pagam sua fatia justa de impostos”, disse. “A otimização tributária internacional e a digitalização criaram, por tempo demasiado, brechas que permitem algumas empresas driblar impostos. Precisamos restabelecer um sistema baseado na tributação justa.”
 
Ele diz que a crise do coronavírus “tornou essa reforma mais urgente do que nunca”. “É hora de as empresas de tecnologia que vêm prosperando nesta crise contribuírem para o esforço público.”
 
Mas mudar o sistema exigirá uma verdadeira revolução. Práticas tributárias agressivas ficaram no centro dos holofotes na esteira da crise financeira global de 2008, inspirando incontáveis promessas políticas de endurecimento. Embora algumas tenham avançado, foram os contribuintes individuais os que carregaram o fardo extra.
 

 
Em 2018, dez anos depois da crise financeira, as grandes multinacionais estão pagando menos imposto como proporção do lucro, segundo pesquisa do “Financial Times”, ainda que a tributação das pessoas físicas tenha aumentado.
 
Hoje, Europa e EUA parecem estar mais próximos de uma guerra comercial sobre tributação digital do que de qualquer novo acordo relevante de padronização global. A história, porém, sugere que atritos existenciais sobre os Tesouros podem ser prenúncio de criatividade fiscal. A guerra civil americana fez o governo federal dos EUA recorrer pela primeira vez a um imposto sobre a renda. Impostos sobre o consumo foram testados inicialmente na Europa para financiar a Primeira Guerra Mundial. Os que fazem campanha por mais impostos acreditam que a ressaca fiscal da pandemia poderá ser mais um desses momentos.
 
Alex Cobham, CEO da organização não governamental britânica Tax Justice Network, diz que o mundo não pode voltar às práticas “sujas” de sempre. “Por décadas, toleramos a ideia de que pagar menos impostos era algo bom para os negócios. Esse espírito não existe mais”, diz. “[Antes] a grande oportunidade para a próxima década era pegar os mais agressivos na elisão de impostos – agora, a sensação é de que isso pode ocorrer nos próximos dois anos.”
 
“A Harvard dos departamentos de impostos”. Dezenas de fatores inter-relacionados corroeram o sistema de tributação das multinacionais nos últimos 50 anos: a redução das alíquotas, os fluxos de capital cada vez maiores atravessando fronteiras, as brechas difíceis de resistir e os incentivos agressivos de Estados desesperados por atrair multinacionais.
 
Desde o fim dos anos 80, houve uma completa mudança na mentalidade, que teve como pioneira (e foi levada a extremos) pela General Electric (GE), maior empresa industrial americana em valor de mercado durante a maior parte dos últimos 40 anos.
 
Sob o comando do falecido Jack Welch, que administrou a empresa de 1981 a 2001, uma pequena equipe tributária foi transformada numa máquina empresarial de girar dinheiro, um departamento com 1,2 mil advogados tributaristas em cinco continentes.
 
Os frutos: entre 2008 e 2015 a empresa, além de não pagar nada em impostos federais nos EUA, segundo pesquisa do centro de estudos Institute on Taxation and Economy Police, contabilizou benefícios tributários de mais de US$ 1,3 bilhão no período de sete anos.
 
A GE considerou o estudo “falho e enganoso” e diz ter pago US$ 32,9 bilhões em impostos em todo o mundo nos últimos dez anos. Mas o seu departamento tributário é reconhecido como um dos mais eficientes no mundo empresarial.
 
Um dos primeiros especialistas tributaristas contratados por Welch foi John Samuels, ex-funcionário do Tesouro americano, conhecido pela gravata borboleta. Quando saiu da GE em 2014, Samuels presidia o que ganhara o apelido de “a Harvard dos departamentos tributários”. “Havia frutos fáceis de colher por todos os lados. Todos achavam que eu era um gênio, mas não sou, nem era”, disse Samuels em entrevista para a Universidade de Nova York, sua alma mater.
 
Ao longo dos anos, a inquietação pública e política com tais práticas aumentou. Para a GE, isso atingiu o ápice no Reino Unido, onde o governo processa a empresa por apresentar argumentos fraudulentos para se qualificar a isenções fiscais. O governo quer reaver 1 bilhão de libras, mais juros e multas. A GE nega irregularidades e se defende na Justiça.
 
“Descobrir onde está a linha que separa a elisão fiscal da evasão fiscal, e caminhar no lado correto, se tornou uma parte importante da estratégia tributária das grandes multinacionais”, diz um especialista tributarista a par do caso da GE. “O caso no HMRC [a Receita Federal britânica] levanta questionamentos sobre toda a configuração política do regime tributário.”
 
Embora tenham surgido promessas políticas de sobra para coibir comportamentos tributários agressivos depois da crise de 2008, elas foram acompanhadas frequentemente por incentivos oferecidos por governos para atrair investimentos das empresas.
 
“A política de impostos sobre pessoas jurídicas se tornou um playground para impulsos populistas”, diz Mihir Desai, professor da Harvard Business School. “Gestos antagonistas grandiosos – particularmente direcionados contra empresas estrangeiras – podem ser compensados por negócios lucrativos e regimes especiais de tributação da receita obtida com patentes [uma forma inovadora de isenção fiscal] que ninguém percebe. É uma receita para uma política de impostos sobre as empresas ainda mais bizantina.”
 
Dan Neidle, tributarista na banca de advocacia Clifford Chance, em Londres, diz que o problema de recorrer a uma, supostamente fácil, maior arrecadação tributária sobre o setor empresarial, é que “os números não batem facilmente”. “Você pode elevar alíquotas e não fará grande diferença em déficits orçamentários medidos em múltiplos de US$ 100 bilhões”. Ele acrescenta que os lucros das empresas deverão cair muito neste ano e possivelmente também em 2021, reduzindo a arrecadação.
 
Mas a pandemia – e a grande ajuda às empresas – deve endurecer o ponto de vista político. Cerca de 35% das empresas que receberam empréstimos do Banco da Inglaterra (o BC britânico) nesta crise têm sede – ou grandes partes do capital em mãos de residentes – em paraísos fiscais, aponta o centro de estudos TaxWatch UK. A Baker Hughes recebeu crédito de 600 milhões de libras apesar de sua controladora, a GE, estar sendo processada pelo Reino Unido por impostos não pagos em 16 anos.
 
Alheio ao mundo digital. Poucas reformas são tão assustadoras às autoridades no mundo quanto a de impostos sobre empresas. Isso basicamente exigirá reformular princípios apresentados pela primeira vez em 1924 pela Liga das Nações, que deu aos países o direito de tributar a renda de uma empresa com base no lugar onde estava presente fisicamente.
 
Esses princípios ainda sustentam tratados tributários bilaterais, que aparentemente não têm ciência de como a economia digital intangível transformou os fluxos de capital globais. Na maioria das vezes, descobrir onde o lucro é obtido é tarefa complicada no caso de multinacionais com redes internacionais de ramificações. Quando se soma a isso a existência de paraísos fiscais, fica fácil ver por que os críticos dizem que o sistema tributário é uma relíquia do século 20.
 
A inércia política contribuiu para o quadro. “Nosso sistema tributário não é uma lancha rápida, mas um petroleiro que quando cria ondas, cria ondas muito grandes”, diz Anita Monteith, assessora sênior no Instituto dos Contadores Registrados da Inglaterra e País de Gales (ICAEW). “Você precisa mudar as regras internacionalmente, o que não é fácil; isso traz recriminações e há um risco de retaliação.”
 
Desde a crise de 2008, a pedido do G-20, o trabalhoso plano de reforma tributária global recaiu sobre a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e sobre Pascal Saint-Amans, ex-funcionário do Tesouro francês, que hoje comanda a área de impostos da instituição com sede em Paris. Ele admite que as leis tributárias de alguns países continuam sendo “um palavrão”.
 
“Temos participantes globais, mas soberania local”, diz Saint-Amans. “Esses participantes globais podem jogar as soberanias umas contra as outras. A ausência de regulamentação por parte dos países, por medo de perder soberania, fez com que, na prática, acabassem perdendo sua soberania.”
 
Pilares da reforma. Depois de anos barganhando nos bastidores com 137 países, os esforços da OCDE agora têm foco em duas reformas para melhorar a tributação das multinacionais.
 
A primeira, chamada de “pilar 1”, fortalece o direito de os países tributarem as empresas a partir das vendas em seus territórios, independentemente de onde a empresa é legalmente constituída (um ganho para a maioria das grandes economias e uma perda para os paraísos fiscais).
 
“Haverá ganhadores e perdedores”, diz Ross Robertson, da consultoria BDO. Para os europeus, o ponto atrativo é capturar uma fatia maior do lucro das empresas tecnológicas americanas; Washington, por sua vez, reivindicará uma parte maior dos lucros obtidos com os bens de luxo e os carros vendidos nos EUA.
 
O segundo pilar tenta criar um patamar mínimo de imposto a ser aplicado sobre todas as multinacionais. A OCDE estima que as duas reformas elevariam a arrecadação de impostos sobre as empresas em 4% no mundo, somando US$ 100 bilhões ao ano.
 
Saint-Amans admite que o prazo de uma reforma até o fim do ano soa “insano”. E disse isso antes mesmo de Steven Mnuchin, secretário do Tesouro dos EUA, ter pedido em junho a suspensão das discussões, reclamando que haviam se tornado um estudo sobre como outros países taxariam o Vale do Silício. E ameaçou impor tarifas sobre países europeus, caso sigam com impostos unilaterais digitais.
 
Apesar dos obstáculos, Saint-Amains diz que, em vista da ajuda emergencial dada às empresas durante a pandemia, os governos vão querer sujeitar as multinacionais a um padrão de comportamento mais elevado. “Os países que compraram participação nas empresas terão a expectativa de que, quando elas voltem a dar lucro, não colocarão esse lucro em paraísos fiscais.”
 
Talvez o aspecto mais desanimador do processo na OCDE é seu limite numa era pós-covid-19. Mesmo US$ 100 bilhões extras em impostos sobre as empresas seriam uma contribuição modesta à consolidação fiscal do mundo. Um documento do Tesouro britânico estima um déficit de 337 bilhões de libras no atual ano financeiro. Em comparação, o imposto sobre serviços digitais do país deverá gerar 280 milhões de libras neste ano.
 
“Não sei se você pode satisfazer a opinião pública, que parte de um local diferente do que o sistema tributário internacional parte”, diz John Cullinane, diretor de política tributária do Chartered Institute of Taxation Reino Unido.
 
Quando começar para valer o imenso trabalho de reparo dos déficits fiscais, é possível que sejam contempladas opções mais radicais, que proporcionem uma arrecadação mais considerável e a promessa de maior equidade.
 
Alguns estudiosos defendem o aumento do alcance dos impostos sobre as emissões de carbono. Dados da OCDE revelam que 70% das emissões de gás carbônico relacionadas a fontes de energia, tanto em países ricos quanto em desenvolvimento, são totalmente livres de impostos. Outros propõem formas de taxar o consumo, que tributariam as empresas na ponta em que os bens ou serviços são comprados. Ambas as ideias têm potencial para deixar os negociadores da OCDE bem ocupados.
 
Seja quais forem as medidas por tomar, Joseph Thorndike, especialista em história tributária, considera ao menos um ponto quase certo. “Numa emergência, todos pagam mais.” (Colaboraram Alex Barker e Paul Murphy –  Tradução de Sabino Ahumada)