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Com avanço da doença e poucos testes, reabertura é arriscada

Fonte: Valor Econômico (29 de maio de 2020)

O Brasil tem hoje quase 11 vezes mais casos de covid-19 do que o oficialmente registrado, uma grau de subnotificação que, junto com outros indicadores ruins, como o crescente número de mortes, pode inviabilizar a reabertura segura da economia, segundo especialistas. Sem conhecer a real dimensão da doença, o risco é de voltar a paralisar a atividade e voltar à estaca zero. O governo e a prefeitura de São Paulo anunciaram a flexibilização da quarentena ontem e anteontem, iniciativa também já anunciada por Estados como Rio de Janeiro, Ceará e Maranhão.
 
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que o isolamento social seja relaxado quando a curva de casos e mortes embicar para baixo e quando houver testes disponíveis para boa parte da população, entre outras recomendações. No Brasil, nenhum desses dois parâmetros foi alcançado.
 
Segundo estimativa do grupo Covid-19 Brasil, formado por especialistas de várias universidades públicas do país, existem 4,45 milhões casos de covid-19 no país. O número, referente ao dia 27 de maio, é 10,8 vezes maior que o registrado pelo Ministério da Saúde, de 411,82 mil.
 
A subnotificação é resultado do baixo número de testes. O país está na 123 ªcolocação no ranking mundial da plataforma Worldometer, com 4,1 mil testes por milhão, atrás de Itália (25º lugar, com 59,6 mil), Estados Unidos (35º lugar, 47,9 mil), e mesmo vizinhos como Peru (50º lugar, 27,4 mil) e Chile (52º lugar, 26,9 mil).
 
Para Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) e coordenador do Covid-19 Brasil, a pandemia está longe de ser estabilizada por aqui e, para reabrir a economia, a testagem teria de ser bem maior. “O número de casos e de mortes continua em aceleração”, diz. Segundo a Universidade Johns Hopkins, que agrega os números da pandemia no mundo, o Brasil saiu de 44 casos por 100 mil habitantes no dia 1º de maio, para 196,6 no dia 27, enquanto as mortes subiram de 3 para 12,22 no mesmo período.
 
Sem testes suficientes, aumentar leitos de UTI, um dos parâmetros que têm sido usados para justificar a reabertura do comércio, é “enxugar gelo”, diz Alves. “Cidades como São Paulo e Rio de Janeiro deveriam estar em ‘lockdown’ há pelo menos duas semanas”, diz o pesquisador, para quem a motivação para o relaxamento da quarentena pelo país é basicamente política. “As decisões não estão totalmente embasadas em evidências científicas.”
 
Segundo o Covid-19 Brasil, em São Paulo seriam 978,67 mil casos, ante 89,48 mil confirmados até o dia 27, ou 10,9 vezes mais. Na capital paulista seriam 620,6 mil, de 49,26 mil nos casos oficiais, ou 12,6 mais. Ontem, um dia depois de o Estado anunciar a volta gradual das atividades, o número de casos registrados bateu o recorde de 6.382, quase o dobro do dia anterior, de 3.466. O número de mortos foi de 268. Menos que os 289 da quarta-feira.
 
No Estado do Rio de Janeiro, o total pode chegar a 691,6 mil casos, contra 40 mil oficiais, ou quase 17,3 vezes mais. Na capital, 489,9 mil, de 24,75 mil registrados, ou 19,8 vezes. Pesquisadores do Instituto de Pós Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ) dizem que, desde o início da crise, haveria pelo menos nove vezes mais infectados no Estado. Mesmo levando em conta só estatísticas oficiais, a situação do Rio permanece grave. “A presença do vírus ainda não está regredindo. Certamente, não é o momento de pensar em relaxar o isolamento”, diz o professor de engenharia de sistemas e computação da Coppe/UFRJ Guilherme Horta. Ele foi um dos responsáveis pela previsão de que o Rio alcançaria os 40 mil casos oficiais na primeira semana de junho, o que aconteceu seis dias antes, na última terça-feira. Segundo Horta, o fato demonstra que o vírus ainda circula com força no Estado e que a subnotificação pode ser ainda maior do que se imagina.
 
A Coppe calcula que, no Rio, a taxa de reprodução do vírus (R0) seja de 2,22, pouco abaixo dos 2,46 do início do mês. Trata-se do número de pessoas que um infectado contamina, em média. Em São Paulo, esse índice estaria acima de 1. “O ideal seria chegar a 0,5, o que significaria queda importante na velocidade de contaminação”, diz. Apesar das indicações, tanto o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), quanto o prefeito da capital, Marcelo Crivella (Republicanos), já falam em retomada parcial de atividades no início de junho. Em São Paulo, Estado e capital também retomam atividades no próximo mês, em diferentes graus de abertura dependendo da região.
 
Os números da Coppe são próximos aos do Instituto de Matemática da UFRJ. Mas, segundo o matemático responsável, Bernardo Freitas, os resultados só dizem com precisão sobre a tendência de duas semanas atrás por causa do tempo de incubação do vírus, da hospitalização e testagem. Para dimensionar com mais precisão a subnotificação, ele diz que seria preciso realizar pesquisas estatísticas a partir de testagens da população, para verificar quanto dela já se infectou.
 
Inquéritos sorológicos seriam o caminho mais adequado para dominar o déficit de informações no Brasil na visão do ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão. “As pesquisas [de campo] oferecem mais precisão regional que os modelos matemáticos.”
 
Pesquisas desse tipo foram encomendadas pelo Ministério da Saúde, ainda sob Luiz Henrique Mandetta, à Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A última etapa da pesquisa, realizada entre 14 e 21 de maio, indicou que 1,4% das pessoas já haviam tido contato com o vírus em 90 cidades onde foram realizados mais de 200 testes. O resultado é uma pista da situação nacional: haveria, na verdade, sete vezes mais casos do que o número oficial. Alves, da FMRP-USP, diz que a chamada imunidade coletiva só seria alcançada com ao menos 40% da população atingida pelo vírus.