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Começam a surgir os cargos divididos e a semana de quatro dias

Fonte: Valor Econômico (05 de agosto de 2019)

Luciana Paganato é vice-presidente de RH da Unilever Brasil, empresa que está testando pela primeira vez o “job sharing” — Foto: Sergio Zacchi/Valor


Carolina Mazziero e Liana Fecarotta, ambas diretoras de recursos humanos da Unilever, estão trabalhando somente três dias por semana— ao invés dos tradicionais cinco — desde abril. Assim como a jornada, o salário das duas profissionais também foi reduzido, e agora elas recebem 60% do que ganhavam antes. “Trabalhando 60% do tempo, as duas recebem 60% do salário e os benefícios seguem a mesma lógica”, explica Luciana Paganato, vice-presidente de recursos humanos da multinacional.
 
Não se trata de uma redução forçada da jornada em função de um corte de custos da empresa. Trabalhar menos foi uma escolha das duas executivas, que agora compartilham o mesmo cargo e se dividem entre as tarefas da função, em um modelo que a Unilever está chamando de “job sharing” ou cargo compartilhado.
 
Pela organização feita, nenhuma das duas trabalha às sextas-feiras e há dois dias na semana em que Carolina e Liana estão simultaneamente na companhia para alinhar o trabalho e fazer reuniões presenciais com a equipe.
 
A ideia do “job sharing” surgiu de uma conversa entre as duas diretoras. Elas estavam passando por um momento de vida em que gostariam de ter mais tempo para se dedicarem aos filhos e aos estudos. Carolina, que tem dois filhos, estava prestes a voltar de licença maternidade, e Liana, também mãe de dois, gostaria de ter mais tempo para a família e os estudos. Juntas, começaram a imaginar como seria dividir a mesma função e trabalhar menos. “Nós já havíamos tido contato com profissionais da companhia em outros países que faziam “job sharing” e sabíamos que era possível. Então, quando elas me trouxeram a ideia, recebi a sugestão positivamente”, diz Luciana. “Fizemos algumas consultas internas para pensar em como estruturar o novo modelo, montei a proposta, apresentei para o ‘board’ e eles aprovaram.
 
A experiência do cargo compartilhado está relacionada à vontade da Unilever de ter novos formatos de trabalho, segundo Luciana. “O modelo é uma evolução das iniciativas de flexibilidade já existentes, como horário flexível e home office, e atende ao anseio de jovens talentos e profissionais que desejam um modelo mais colaborativo, inovador e diverso”, diz a executiva. “Enquanto os funcionários ganham flexibilidade para acomodar demandas pessoais, sem abandonar suas respectivas carreiras, a companhia ganha em produtividade e inovação.”
 
Operações da Unilever em outros países, como Inglaterra, Holanda e Austrália, já praticam o “job sharing” há mais tempo e a intenção é que a modalidade possa seja ampliada. “Como é a primeira vez que a Unilever Brasil experimenta esse formato, tudo ainda é novo, mas a intenção é oferecer essa possibilidade para outros funcionários”, explica Luciana. “Após seis meses vamos avaliar os aprendizados, as oportunidades e os próximos passos.”
 
Outra multinacional que tem algo semelhante é a Bosch, com mais de 8 mil funcionários no Brasil. Além de oferecer home office, a empresa tem a modalidade de jornada parcial, que permite ao funcionário exercer suas atividades em uma carga horária semanal reduzida de até 30 horas. Paula Pessoa, gerente de recursos humanos da Bosch América Latina, explica que a empresa não tem formalmente em sua política a modalidade “job sharing”, mas afirma que ela é possível caso existam duas pessoas com jornada parcial cumprindo uma atividade complementar. “A jornada reduzida é uma possibilidade para todos os colaboradores das áreas administrativas e a carga horária semanal de até 30 horas pode ser distribuída conforme a necessidade do funcionário e da empresa. É importante que haja interesse do colaborador e a validação do gestor para que os resultados sejam positivos para todos”, diz a executiva.
 
Para ela, novas formas de trabalho estão alinhadas com as mudanças nas relações entre empregador e empregado. “Além de oferecer ao colaborador mais qualidade de vida, a jornada flexível traz impactos positivos no clima organizacional, deixa o profissional mais motivado e possibilita que a empresa conte com pessoas qualificadas que, por vezes, não têm disponibilidade para trabalhar em jornada integral ou 100% presencial na empresa”, diz Paula. Desde que a companhia começou a implementar a jornada flexível, em 2013, foram observados impactos positivos na gestão por resultado, na prática da autonomia, na delegação, na confiança nas equipes e na atração de talentos.
 
A semana de trabalho reduzida, ainda bastante incipiente, vem ganhando espaço nos debates de recursos humanos. Em janeiro deste ano, o tema chegou a Davos, durante o Fórum Econômico Mundial. A justificativa é que trabalhar menos poderia trazer uma série de benefícios aos trabalhadores e às empresas. “Nós temos boas experiências mostrando que, ao reduzir o número de horas de trabalho, as pessoas são capazes de focar sua atenção com mais eficiência, produzindo com mais qualidade e criatividade. As pessoas também são mais leais às organizações dispostas a oferecer flexibilidade, por se preocuparem com os funcionários fora do trabalho”, disse Adam Grant, psicólogo organizacional da Wharton School, escola de negócios da Universidade da Pensilvânia, durante o Fórum.
 
O ponto de vista de Grant é amparado em pesquisas e experimentos que mostram que a semana de trabalho mais curta pode deixar as pessoas mais felizes e produtivas.
 
Na Nova Zelândia, a empresa Perpetual Guardian se submeteu ao teste de retirar um dia inteiro da semana de trabalho. Em março e abril do ano passado, a empresa pediu aos seus 240 funcionários que trabalhassem quatro dias por semana — ao invés de cinco — com a mesma remuneração e pacote de benefícios. A jornada semanal teria, então, 30 horas, e a quantidade de trabalho seria a mesma de uma semana normal.
 
Pesquisadores da Universidade de Auckland entrevistaram os funcionários antes e depois do experimento e constataram um aumento no engajamento da equipe. O comprometimento passou de 68% (antes do teste) para 88% (depois), enquanto que a motivação subiu de 66% para 84%. A experiência também gerou uma percepção melhor sobre o equilíbrio entre vida pessoal e trabalho, com o índice passando de 54% para 78%, enquanto o nível de estresse caiu sete pontos percentuais. Ao mesmo tempo, a liderança da companhia informou que a  produtividade se manteve, com ligeira melhora na maioria das equipes. Com o resultado da experiência, a empresa neozelandesa decidiu adotar a semana de trabalho de quatro dias de forma permanente.
 
Apesar de existirem casos pontuais já implementados de redução da jornada de trabalho e de a discussão vir à tona entre profissionais e pesquisadores, há uma barreira cultural impedindo que o assunto avance. “A lógica da vigilância e do controle do trabalho ainda é muito forte”, afirma Vanessa Cepellos, professora e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Organizações e Pessoas da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Eaesp). “Em muitos lugares ainda é mais importante estar presente fisicamente oito horas no escritório, mesmo que o funcionário não esteja produzindo. É uma rotina que acaba sendo mais importante do que a produção em si.” Ela reforça, no entanto, que o trabalho flexível é, sim, uma tendência. “Faz parte de uma ideia de futuro do trabalho, considerando o contexto dinâmico que a gente vive.”
 
Coordenador do Programa de Estudos em Gestão de Pessoas (Progep) da FIA (Fundação Instituto de Administração), Joel Dutra corrobora o pensamento da professora. “A flexibilização do trabalho é uma tendência muito forte, e não só em termos de jornada, mas inclusive em relação ao tipo de vínculo empregatício”, afirma. Mas ele também pontua a questão cultural como entrave. “Há resistências culturais por parte das lideranças. Somente empresas mais modernas em termos de gestão partem para a total flexibilização.”
 
Fábio Affonso, professor de comportamento organizacional do Ibmec SP, vê com bons olhos a prática e não acredita que ela possa gerar uma sobrecarga de trabalho. “É uma resposta ao mundo estressado que vivemos. Se bem estruturada, a prática não vai gerar mais trabalho, mas há o desafio de lidar com o comportamento egóico dos gestores. Quando um deles toma decisão, o outro precisa aceitar. A sintonia disso é o desafio.”
 
Dados da Organização Internacional do Trabalho mostram que, ainda hoje, um terço da força de trabalho global trabalha mais do que 48 horas por semana, apesar de a instituição ter observado progresso substancial na redução de horas trabalhadas em muitos países desde a adoção da Convenção Número 1, de 1919, que definiu a jornada de oito horas diárias e 48 semanais. No estudo “Expediente e o Futuro do Trabalho”, publicado em 2018, a OIT afirma
que há diversas razões para se considerar a redução da jornada. “Horas de trabalho mais curtas são positivamente associadas a uma maior produtividade devido à redução da fadiga, motivação do trabalhador, diminuição do absenteísmo, menores riscos de erros e acidentes de trabalho e à redução da rotatividade. Jornadas mais curtas também tendem a reduzir problemas de saúde ocupacional e custos associados à assistência médica, além de melhorar o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal”, pontua o estudo.
 
Cerca de três anos atrás, a indústria automobilística adotou a semana reduzida de trabalho, mas por outro motivo: a crise. Com a produção de veículos em queda, essa foi uma das soluções encontradas pelas empresas do setor para segurar as demissões. Com a retomada das vendas, a jornada de cinco dias retornou.