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Poderá o blockchain revolucionar os transportes de mercadorias?

Fonte: Logística e Transportes Hoje (11 de julho de 2019)

Na primavera de 2018, uma densa cortina de nevoeiro fez engasgar as operações logísticas do porto de Xangai, com a Autoridade de Segurança Marítima a restringir o tráfego de navios de carga e a causar atrasos em massa. O congestionamento teve um efeito dominó na cadeia logística, alastrando-se a quase todos os grandes portos chineses, e as dificuldades arrastaram-se durante meses. Foram afetados ‘hubs’ desde Banguecoque a Kolkata, custando tempo e dinheiro a empresas em todos os níveis da cadeia de fornecimento.
 
Este tipo de problemas meteorológicos é inevitável e, até agora, nenhuma plataforma tecnológica prometeu resolver as temporadas de nevoeiro intenso que se abatem sobre os portos asiáticos. Mas a indústria de transporte de mercadorias pode beneficiar da digitalização para mitigar os problemas que advêm desses atrasos. É isso que defendem a IBM e a Maersk, duas gigantes que se juntaram para criarem a primeira plataforma de blockchain dedicada ao transporte de contentores: TradeLens.
 
“O objetivo final é digitalizar a cadeia de fornecimento global”, disse à LOGÍSTICA&TRANSPORTES HOJE (L&TH) o diretor da TradeLens na IBM, Marvin Erdly. “Muitas outras indústrias passaram por iniciativas de digitalização e empresas individuais, por exemplo transportadoras, também fizeram isso. Mas não houve um empurrão para digitalizar a cadeia de fornecimento de uma ponta a outra, por muitas razões”, explicou. “Estamos a tentar fazê-lo usando blockchain.”
 
A tecnologia que ficou conhecida por ser a base da criptomoeda Bitcoin tem características que a tornam especialmente atrativa para o sector dos transportes de mercadorias. O blockchain permite criar um registo descentralizado e imutável, em que os intervenientes têm a certeza de que os dados que vão sendo introduzidos nunca foram corrompidos nem poderão ser eliminados no futuro. A plataforma serve, portanto, para seguir o rasto das mercadorias, saber onde estão a cada momento e eliminar redundância na documentação. As informações são trocadas de forma previsível e segura, imprimindo maior eficácia a um segmento com muitas variáveis.
 
“Se perguntar a qualquer empresa que gere uma cadeia de fornecimento complexa, este é um grande problema: a incapacidade de ter visibilidade apropriada sobre o estado de uma remessa de mercadorias pode ter um enorme impacto na cadeia logística”, refere Marvin Erdly. Um bom exemplo disso é uma construtora automóvel que envia componentes de todo o mundo para uma fábrica no México e depois exporta carros para os Estados Unidos. Se alguns contentores forem barrados na Holanda porque a papelada não estava em ordem, esses componentes não vão estar disponíveis, o que obrigará a construtora a ter excesso de inventário. E isso custa dinheiro.
 
“Não houve um empurrão para digitalizar a cadeia de fornecimento de uma ponta a outra, por muitas razões” (…) “Estamos a tentar fazê-lo usando blockchain” – Marvin Erdly, IBM
“Há um tremendo benefício em aumentar a visibilidade e ter conhecimento de problemas em tempo real assim que eles acontecem”, sublinha Erdly. “Há ângulos mortos em todos os pontos da cadeia logística e muitas vezes as pessoas que estão a fazer as expedições de mercadorias não têm visibilidade de problemas que ocorrem até muito depois de estes acontecerem, o que faz com que não os possam endereçar.”
 
Uma solução aberta
Há dois anos que a IBM e a Maersk estão a trabalhar nesta joint-venture com a ambição de “revolucionar o comércio global”, tendo anunciado formalmente a solução em janeiro de 2018. Baseada na versão de blockchain Hyperledger Fabric, a TradeLens é uma plataforma suportada por standards abertos. Isso reflete a ambição das criadoras, visto que permite que sejam aceites dados de qualquer transportadora, membro ou não da plataforma, e que as conexões técnicas sejam muito fáceis de fazer, através de interfaces aplicacionais abertas e gratuitas.
 
O intuito é construir um enorme ecossistema global. Na fase beta, entraram ou estão para entrar mais de uma centena de empresas e entidades, naquele que pode ser considerado um projeto piloto em massa.
 
“Este nível de apoio demonstra o apetite que existe por nova tecnologia que possa endereçar os impedimentos técnicos e estruturais que têm sido um obstáculo de longa duração para o comércio global”, considera a IBM. O número de transações ativas já ultrapassa os 300 milhões.
 
Entre os participantes que aderiram à TradeLens estão 40 portos e terminais em várias partes do mundo: desde o porto espanhol de Bilbao aos de Roterdão e Halifax, a PSA Singapore, a Modern Terminals em Hong Kong, a International Container Terminal Services, a Patrick Terminals, a PortConnect, PortBase e os operadores Holt Logistics no Porto de Filadélfia. Segundo as contas da IBM e da Maersk, 234 pontos de entrada marítima estão ou irão estar brevemente na plataforma.
 
“O ecossistema é composto pela rede, as empresas ou entidades que fornecem e consultam dados, do tipo transportadoras marítimas, portos e terminais, autoridades alfandegárias, camiões”, indica Erdly. Para estes players, a premissa é que se entrarem na rede e fornecerem dados também terão acesso a informações de ponta a ponta. “É um ciclo virtuoso, quanto mais entidades entrarem, mais dados estão disponíveis para toda a gente”, sublinha.
 
A lista conta com oito autoridades alfandegárias, incluindo Holanda, Arábia Saudita, Roterdão, Austrália, Peru e Singapura, três transportadoras terrestres e quatro marítimas. Os transportadores de contentores Pacific International Lines (PIL) e Hamburg Süd também entraram e há ainda que contabilizar a Agility, CEVA Logistics, DAMCO, Kotahi, PLH Trucking Company, Ancotrans e WorldWide Alliance.
 
Do outro lado da cadeia logística, aderiram várias grandes empresas que expedem mercadorias: são os casos da Dow Chemical, DuPont, Tetra Pak, Torre Blanca / Camposol e Umit Bisiklet. Estas são, segundo Marvin Erdly, “as principais beneficiárias da informação” – as empresas que fazem o envio de mercadorias, como retalhistas, construtoras automóveis, manufatura, serviços financeiros. É aqui que assenta o modelo de negócio da IBM: as empresas que enviam mercadorias vão pagar uma assinatura para acederem à TradeLens. Essa subscrição será “adequada ao número de contentores cuja informação entra na plataforma”.
 
Onde está o retorno do investimento
Uma das dificuldades que existem em qualquer solução que pretende ser disruptiva é demonstrar o retorno do investimento quando a plataforma ainda está no início. Mas a IBM e a Maersk garantem que tal não será difícil com o blockchain na indústria de transporte de mercadorias. “Há poupanças de custo significativas”, afirma Marvin Erdly, falando de vantagens econômicas para as transportadoras marítimas “só por reduzirem os volumes de chamadas de apoio ao cliente”.
 
O responsável de comunicação da Maersk, Mikkel Elbek Linnet, aponta para os resultados obtidos durante os primeiros doze meses de testes: num dos casos, o tempo de trânsito de uma remessa de materiais de construção para os Estados Unidos foi reduzido em 40%, evitando “milhares de dólares” em custos. O foco dos testes esteve na redução de atrasos através da prevenção de erros de documentação e de outros “impedimentos.”
 
“Estas empresas despendem muito tempo e esforço com uma única e simples pergunta: onde está o meu contentor?”, sublinha Marvin Erdly. “Acredite-se ou não, essa é uma pergunta difícil de responder.” Isto não apenas para quem envia os produtos (como retalhistas ou fabricantes,) mas também para as transportadoras, que têm de ter “imensos recursos humanos só para responder a essa pergunta.” Nos testes, alguns operadores logísticos descobriram que conseguiam reduzir a resposta a esta questão de dez passos e cinco pessoas para um passo e uma pessoa, usando a TradeLens.
 
Alguns críticos, como o ex-diretor de logística internacional da cadeia de mobiliário Bob’s Discount Furniture, que escreveu numa publicação de LinkedIn, revelaram ceticismo quanto à possibilidade de uma plataforma documental poder reduzir substancialmente o tempo que uma encomenda leva a chegar ao destino. Marvin Erdly clarifica: “Se pensar na quantidade de tempo que um contentor permanece num camião para ser transportado de A a B, ou num navio para viajar entre dois portos, certo, a digitalização não vai mudar isso fisicamente. Mas há muitos outros problemas.”
 
A redução do tempo de trânsito está relacionada com a resolução ou prevenção de problemas. É quando ocorrem imprevistos que os custos começam a acumular-se. “A maioria dos players na cadeia logística têm estas questões de visibilidade e não descobrem os problemas até ser tarde demais.”
 
Outro ponto é o tempo que demora e o esforço que requer fazer a papelada manualmente. Poder reduzir o tempo para minutos ou segundos, porque os dados estão disponíveis para todos os envolvidos de uma forma segura, deverá acelerar todo o processo, diz Erdly. “Há uma proposta de valor enorme em torno disso”, garante, referindo o “tempo, esforço e trabalho manual” envolvidos em preparar a documentação requerida para exportar e importar bens. “A capacidade de digitalizar isso e lançar workflows automatizados por toda a organização e entidades que precisam de partilhar informação gera imensas poupanças de dinheiro.”
 
O blockchain é mesmo necessário?
Segundo o responsável da TradeLens, o blockchain é uma parte importante disto e tem um papel crítico, “mas a plataforma não é só blockchain.” A ambição da IBM e da Maersk é digitalizar a indústria, não apenas lançar uma nova tecnologia em cima de uma parte dela. O blockchain é o elemento que permite que o ecossistema se junte e partilhe dados de forma segura, pelo que sem ele tal não seria possível. “Usamos o termo imutabilidade”, explica Erdly. O blockchain permite “garantir que os dados que estão na plataforma são imutáveis e as pessoas que estão a olhar para eles sabem que não foram alterados.” Há também um aspeto de segurança, porque a forma como é apresentada a solução permite que os dados não estejam centralizados numa base de dados. “Os dados estão descentralizados por toda a rede, através de nós de blockchain.”
 
As empresas e entidades que participam na TradeLens fazem-no através de um sistema de permissões, o que garante uma camada de confiança que antes não existia.
 
“O motivo pelo qual o blockchain é crítico é que antes do seu uso não havia forma de estas diferentes entidades espalhadas por todo o mundo poderem trabalhar juntas com confiança e terem a certeza de que os dados que estão a usar são autênticos”, explica Erdly. O responsável diz que esta tecnologia é “o molho secreto que torna isso possível.”
 
As plataformas concorrentes
Prova de que existe interesse na utilização de blockchain para modernizar a logística global é que já existem outras plataformas e consórcios rivais da TradeLens a tentarem conquistar território.
 
Pouco depois de iniciados os pilotos da IBM e Maersk, foi anunciado o sucesso dos testes da solução de blockchain desenvolvida pela Accenture para “revolucionar os transportes de carga marítimos.” O consórcio é formado pela Accenture, AB InBev, APL e Kuehne + Nagel, e o primeiro teste foi feito com uma “organização alfandegária” na Europa.
 
O piloto focou-se na eliminação da necessidade de imprimir documentos de expedição, o que tem potencial para poupar “centenas de milhões de dólares” anualmente em toda a indústria. No caso do segmento automóvel, por exemplo, são necessários mais de 20 documentos diferentes para passar a mercadoria do exportador para o importador, com uma taxa de duplicação de informação que por vezes atinge os 70%.
 
“Finalmente estamos a ver as ideias a passarem do papel para a prática e a serem colocadas em funcionamento” – João Borrego, Oracle
Outra tecnológica a investir neste segmento é a Oracle. A sua solução empresarial de blockchain está a ser usada pelo consórcio “Global Shipping Business Network”, anunciado em novembro de 2018. De acordo com o consórcio, a intenção é “conectar e permitir a colaboração” entre transportadoras, terminais e expedidoras em toda a cadeia logística. A plataforma é liderada pela empresa de software CargoSmart e atraiu nomes sonantes desde o início, com nove transportadoras marítimas e operadoras de terminais a assinarem um Memorando de Entendimento: a Cosco Shipping Lines, a CMA CGM, Evergreen Marine, OOCL, Yang Ming, DP World, Hutchison Ports, PSA International Pte e Porto Internacional de Xangai.
 
A solução de blockchain da Oracle também é aberta. Oferece uma plataforma na nuvem “para criar e executar contratos inteligentes e manter um ledger [registo] distribuído inviolável”, explica João Borrego, consultor sénior de vendas da Oracle Portugal. A vantagem é possibilitar “transações em tempo real e partilhar com segurança dados à prova de falsificação numa rede corporativa confiável.”
 
De acordo com o responsável, a tecnológica está a trabalhar com clientes em Portugal nesta área, “executando pilotos essencialmente no sector público e na banca.” Ainda não há nada que possa ser anunciado na área especifica de logística e transportes, mas João Borrego avança que a Oracle está a ter conversas e tem “aceite desafios” relacionando a tecnologia de blockchain com Internet das Coisas. Tal permitiu encontrar “casos de uso muito interessantes” que “estão a ser equacionados seriamente pelos clientes”, que os encaram como meios de diferenciação perante a concorrência. “Finalmente estamos a ver as ideias a passarem do papel para a prática e a serem colocadas em funcionamento”, salienta o responsável.
 
A indústria de transportes e logística é um dos segmentos onde a Oracle antecipa maior crescimento. É aqui, em paralelo com administração pública e banca/seguros, que a empresa está a encontrar “os casos de uso mais maduros e com benefícios facilmente mensuráveis.”
 
Pelo lado da TradeLens, Marvin Erdly afirma que estão a seguir o surgimento de outras plataformas e que a concorrência é bem-vinda. “Achamos que é um desenvolvimento positivo”, disse. “Valida a visão que tivemos há dois anos quando começamos isto, que outros estão a olhar para a necessidade de endereçar o problema.”
 
O responsável salienta a importância de usar standards abertos para que o mercado cresça de forma global. “A ideia é que todas estas plataformas possam ser interoperáveis”, explicou. “Dessa forma, as entidades que investem para integrar na nossa plataforma ou noutras podem alavancar os investimentos para conectar a múltiplas plataformas.” É tudo, tal como na própria cadeia logística, uma questão de escala.